Os grilos falantes e os políticos profissionais

A celeuma provocada pelos escândalos de corrupção de políticos, na mídia, na opinião pública ledora desta mídia e, no meio desta, dos intelectuais politicamente engajados, tem encontrado inesperada indiferença por parte dos políticos profissionais de todos os partidos. Isto ficou evidente por ocasião do escândalo dos “mensaleiros”, quando nenhum dos partidos atingidos procurou apurar a sério o que havia ocorrido em suas próprias fileiras, sem falar de julgamento e punição dos eventualmente considerados culpados. Delúbio Soares constitui a solitária exceção, que confirma a regra.

A tolerância da maioria dos políticos profissionais em relação às quebras de ética por seus pares ficou documentada ostensivamente quando a maioria da Câmara dos Deputados absolveu a quase totalidade dos mal chamados “mensaleiros”, em oposição direta aos pareceres da Comissão de Ética. E talvez a coisa seja menos estranha se a gente lembrar que o próprio presidente da referida Comissão não ficou imune nos escândalos seguintes. O mesmo vale para alguns dos mais furibundos acusadores das CPIs, formadas para apurar o escândalo inicial.

A explicação para este comportamento algo surpreendente é que o uso ilegal de dinheiro na conquista de votos – e portanto de poder – deve ser extremamente generalizado. Há sem dúvida uma pequena minoria de políticos que não o faz, seja por princípio ou por desnecessidade. São de um lado, mulheres e homens públicos de grande prestígio junto a parcelas importantes do eleitorado, prestígio este que não precisa ser propriamente político   podendo ser religioso, literário, midiático etc.. De outro, mulheres e homens que fazem do exercício da política uma profissão de fé e pouco se importam se serão ou não reeleitos, pois têm outras coisas importantes a fazer na vida. São homens de negócios, artistas, esportistas e…intelectuais.

A grande maioria dos políticos é de pessoas que fazem da política uma carreira e para os quais uma derrota eleitoral pode por a pique um projeto de vida. Por mais que prestem serviços ao seu eleitorado, nenhum deles pode se sentir seguro da vitória na próxima disputa eleitoral, sem fazer uma campanha em regra, o que inevitavelmente implica num orçamento nada trivial. Embora a carreira política seja bem paga, ela não permite aos que a trilham acumular dinheiro em montantes que se aproximem do custo duma campanha. Só um ex-banqueiro de destaque internacional, como Henrique Meirelles consegue ser o deputado mais votado de Goiás, custeando sua campanha com recursos próprios. A quase totalidade dos políticos depende de contribuições alheias para suas campanhas eleitorais.

É como se em nossa democracia, tudo estivesse a venda, inclusive os votos nas eleições gerais. Evidentemente, não são os eleitores que vendem o voto, a não ser em colégios eleitorais em que reina grande pobreza. Aliás, hoje a legislação eleitoral coíbe a venda de votos, sob qualquer forma, até mesmo na de distribuição de brindes, camisetas e bonés, o que talvez não tenha coibido esta prática inteiramente, mas sem dúvida a tornou muito mais arriscada. A Justiça Eleitoral tem sido rigorosa na aplicação da legislação a este respeito.

Na realidade, o que custa caro nas campanhas é a difusão do nome do candidato, pois a grande maioria dos eleitores não tem candidato aos cargos nos legislativos. Estamos tratando aqui das candidaturas aos legislativos, porque este é o prato forte da carreira política. Com a exceção de alguns ‘técnicos’, que são nomeados diretamente para cargos importantes nos executivos, a maior parte destes cargos  é entregue a parlamentares ou a pessoas indicados por eles. Quando o político que vai ao executivo, como titular ou figura de primeiro escalão, se sai bem, sua carreira dá uma guinada para cima e ele passa a ser candidato ‘natural’ em eleições majoritárias, o que lhe permite fazer campanhas muito mais amplas e custosas, que a(o) tornam conhecida(o) no município, no estado ou no país inteiro.

Mas, o nosso foco neste ensaio está principalmente nos parlamentares, cuja progressão mais provável na carreira é o salto do nível municipal ao estadual e deste ao federal. O número de cargos nos legislativos é muito maior que nos executivos, o que não deixa dúvida que o político profissional, dependente das urnas, é tipicamente um parlamentar, obrigado a se submeter regularmente ao julgamento das urnas, em competição com literalmente milhares de outros. Como nossas circunscrições eleitorais são estados ou municípios, que na maior parte dos casos, contêm centenas de milhares ou milhões de eleitores, a tarefa de cada candidato, de difundir o seu nome torna-se complexa, exigindo somas de dinheiro bem elevadas.

Com toda probabilidade, a competição de milhares pelos votos de milhões se faz de forma tão caótica que se torna impossível estimar qual o rendimento em sufrágios por real gasto em diferentes formas de propaganda: mala direta, pagamento a cabos eleitorais, a porta- bandeiras, anúncios em jornais etc., etc.. Não há como racionalizar os gastos e nem como verificar a posteriori de que modo os votos obtidos foram conquistados. O resultado desta “luta nas trevas” é que cada candidato é obrigado a procurar obter o máximo de reais na esperança de converte-los num número suficiente de votos que lhe permita prosseguir na carreira.

O efeito global é a maximização dos gastos. Na dúvida, aceita-se a hipótese de que (com exceção de alguns nomes célebres), o eleitorado escolherá os que forem capazes de difundir com mais força – no espaço e no tempo – o seu nome e o seu número, acompanhados por ‘plataformas’ eleitorais de qualquer natureza. Se um determinado número de candidatos fizer campanhas mais caras, os demais candidatos redobrarão seus esforços para fazer o mesmo, pois qualquer voto perdido para uns é voto ganho por outros, o que vale sobretudo para candidatos do mesmo partido, que disputam entre si os assentos efetivamente ganhos por sua legenda.

Há assim uma emulação para gastar o máximo. E de onde pode provir todo este dinheiro? Uma parte pequena dos próprios candidatos; outra parte pequena de empréstimos, pois o crédito para campanha eleitoral deve andar escasso (dada a inadimplência provável dos candidatos derrotados, necessariamente a maioria). O resto  deve ser arrecadado como contribuições de amigos, parentes, partidários e sobretudo de empresas, com interesses diretos na atividade legislativa. E, com alta probabilidade, de negociatas políticas em que entram compras superfaturadas, venda de apoio a projetos e candidatos e muita coisa mais.

O predomínio do dinheiro na constituição dos legislativos já vem de longe. E ele tende a se acentuar. A cada eleição, os candidatos com menos escrúpulos e por isso com mais dinheiro se elegem e os outros, quanto mais éticos menos aquinhoados, são derrotados. Neste panorama, a corrupção das lideranças populares de favelas e vilas da periferia, de sindicatos e associações etc. avança avassaladoramente. O apoio de lideranças religiosas também tem seu preço.  Pelo que se sabe, há um mercado de votos, sobretudo das populações de baixa renda e o preço não cessa de subir, na medida em que mais dinheiro é investido em candidaturas flexíveis e pragmáticas.

Há aqui um ângulo de classe, que ajuda a entender a “dissonância cognitiva” entre a classe média, sua intelectualidade e sua mídia, de um lado, e os políticos profissionais, de outro. Os votos da classe média – das pessoas de renda e escolaridade acima da média – em princípio não são compráveis por dinheiro. É neste conjunto que se encontram votos orientados por convicções, pelo conhecimento dos candidatos (que em sua maioria provêm desta classe) e eventualmente por idiossincrasias. Os formadores de opinião, que exercem real influência neste eleitorado não se deixam comprar, mesmo porque não precisam tanto de dinheiro.

Fazem parte deste eleitorado também pessoas de baixa renda, mas com fortes convicções ideológicas e éticas. São estes que podem, em seu próprio meio residencial, profissional, religioso, racial etc., se contrapor às lideranças alugadas por candidatos endinheirados e contribuir verdadeiramente para impedir a degeneração final e irremediável dos legislativos. Há, portanto, espaço para o que se poderia chamar de voto consciente, que pode crescer à medida que parcelas crescentes da população ultrapassarem a barreira de  algo como 5 salários mínimos. Acima deste valor, as pessoas têm mais escolaridade, leitura, atividade política e/ou social, mais compreensão do valor vital da ética para o desenvolvimento da democracia no Brasil.

A indignação que se apossou da classe média por ocasião da revelação dos sucessivos escândalos políticos, pode ter dois desenlaces opostos. Um é o desespero, é a desilusão com a política e com a democracia, que desemboca no voto nulo, no protesto inócuo da abstenção e no desencanto completo com o país e com o povo brasileiro. O outro é a mobilização para o combate à corrupção, à torrente de dinheiro que se origina nos interesses privados em negócios escusos e que envenena as disputas eleitorais, ensejando a frustração contínua das esperanças da vasta maioria dos brasileiros, cujos pecados maiores são o alheamento da política e a santa ignorância de que nela se decide o nosso futuro e a de nossa descendência.

O combate à corrupção deve ter duas frentes: uma é o desenvolvimento da consciência política do povão, derivado das lutas por mais e melhores serviços públicos para a maioria dos que não têm dinheiro para compra-los no mercado; a outra, é a reforma política que não  pode ser o voto distrital (que magnífica a representação dos que têm maioria apenas simples à custa da exclusão total dos minoritários.)[1]

Na primeira frente, trata-se de politizar as lutas sociais, capacitando as lideranças a assumir posições de representação política, em estreita ligação com as organizações dos representados. A capacitação política da população deve ser tarefa de partidos com vocação democrática e movimentos sociais de massa, mediante o engajamento das entidades de educação de jovens e adultos, de inclusão digital, de alfabetização de adultos etc..

Na segunda frente, urge igualar ao máximo o montante de dinheiro a disposição de cada candidato para fazer campanha. Esse montante pode ser fixado por um Comitê Eleitoral (como é no México) e deve ser suficiente para tornar a candidatura conhecida pelos eleitores; ele deve ser fornecido a cada candidato a fundo perdido, pelo Tesouro público, como parte integrante do gasto eleitoral. O uso de outros fundos, próprios ou alheios deve ser proibido. A corrupção eleitoral, ou seja, a venda por dinheiro de apoio a candidaturas deve ser coibida, investigando-se o enriquecimento súbito de lideranças populares, a difusão de propaganda de candidatos estranhos à comunidade etc.. O acompanhamento da evolução do patrimônio de políticos profissionais, feita hoje em dia, é um ponto de partida encorajador para a erradicação do uso corruptor do dinheiro nas campanhas eleitorais.

 

[1] Imaginemos que o Brasil estivesse dividido em 515 circunscrições eleitorais (número atual de cadeiras na Câmara). Em cada circunscrição seria eleito o candidato com maioria simples de votos. Suponhamos que em 300 delas o PT tivesse 30% dos votos, o PSDB 20% e os demais partidos os restantes 50%; nas outras 215 circunscrições o PT teria 20% dos votos, o PSDB 30% e os outros partidos os 50% restantes.  Como resultado, o PT teria 300 cadeiras e o PSDB 215, ficando todos os demais partidos sem representação na Câmara, embora em conjunto tivessem recebido metade dos votos. Estados Unidos e Grã Bretanha adotam este sistema, que leva naturalmente a sistema bi ou no máximo tripartidário.  Os poucos partidos com poder de decisão tendem a ser semelhantes do ponto de vista político ideológico e não deixam espaço a plataformas inovadoras.
Paul Singer, 2008
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