Uma Utopia Militante: repensando o socialismo

Originalmente publicado pela Editora Vozes, em 1998, foi relançado pela Editora Unesp e a Fundação Perseu Abramo, em 2022, em “Utopia Militante: três ensaios sobre o socialismo”

Leia a resenha de Chico de Oliveira para o livro publicada no Jornal de Resenhas em fevereiro de 1999.

Urgência do socialismo

O texto é claro, conciso, fluente, didático. Como o autor. Os que o conhecem e, como eu, gozaram do privilégio de tê-lo, por duas décadas, como companheiro de trabalho, jamais o ouviram levantar a voz numa discussão ou usar de argumentos depreciativos contra seus interlocutores; mas o ouviram sempre expor e defender seus pontos de vista sem atender a conveniências e modismos… Paul Singer, como poucos intelectuais e poucos militantes, é a paixão tranquila. Gostaria de ter dito isso também sobre Gabriel Cohn, a quem discípulos e amigos, admiradores, presentearam, recentemente, com um belo livro, “A Ousadia Crítica”. Mas, como não me convidaram, paciência.
Este livro que se resenha é a paixão tranquila em texto. Pois, em tempos de neoliberalismo arrogante, ousa -uma de suas relações com Gabriel Cohn- reapresentar a atualidade e a urgência do socialismo, por uma via que os esnobes de direita e de esquerda chamariam de ingênua, já que chamá-la de utópica perdeu a oportunidade, pois é justamente isso que o autor declara: uma utopia.
A filiação da tese de Singer é claramente marxista, remando, novamente, contra a maré: as revoluções -que ele reconceitua na primeira parte do livro, distinguindo entre revoluções sociais e revoluções políticas- são produzidas no interior do mesmo sistema -ou formação social, como ele prefere- que elas superam ou tentam superar. Esse princípio, aliás, é bem anterior a Marx, mas sua formulação mais precisa deve-se, sem dúvida, ao “mouro”.
A reconstrução da revolução social capitalista, baseada maiormente em Dobb e Mantoux, é de uma admirável concisão; pareceria desnecessária, já que está bem mais desenvolvida tanto nos autores citados quanto numa ampla bibliografia. Mas ela se faz necessária para o que, sem constituir propriamente uma novidade, aparece recontextualizada e brilhantemente renovada: a tese de que a revolução social socialista começa a nascer, precocemente, quase no mesmo momento em que a revolução social capitalista se firma e se reforça pela revolução política capitalista. Vale dizer, sufrágio universal, sindicalismo, cooperativas, medidas de controle da exploração, como as leis sobre jornada de trabalho, fiscalização dos terrivelmente insalubres lugares e condições de trabalho, são as sementes socialistas coetâneas da própria revolução social capitalista. 
Esses pontos são extremamente importantes, posto que sufrágio universal tende a ser assimilado à revolução política capitalista; sindicalismo, sobretudo nos estudos da sociologia do trabalho, apenas a movimentos de organização de trabalhadores; cooperativas, a paliativos bem intencionados da exploração do trabalho; e as medidas que tentam pôr côbro à exploração desenfreada e predatória são interpretadas geralmente como “funcionais” ao capitalismo. A perspectiva de Singer é inteiramente diversa: tais iniciativas de trabalhadores, que sem dúvida introduzem modificações importantes na chamada supra-estrutura do capitalismo, não tiveram caráter funcional, como aperfeiçoamento do capitalismo: foram construídos, tentados, como movimentos anticapitalistas.É radicalmente oposta à posição de um Kurz (“O Colapso da Modernização”, Paz e Terra), por exemplo, que viu em todas as lutas do proletariado apenas um equívoco derivado da adoção acrítica da teoria do valor-trabalho.
Talvez Singer devesse problematizar duas questões metodologicamente importantes. Em primeiro lugar, fica claro que ele fundamenta o que chama de revolução social capitalista, o revolucionamento dos meios de produção da teorização marxista, nas teses de Dobb em seu clássico “A Evolução do Capitalismo” (Zahar). Mas a ruptura do feudalismo está mais para as teses de Sweezy (“Teoria do Desenvolvimento Econômico” e, junto com Paul Baran, “O Capitalismo Monopolista”, Zahar), isto é, de que foram as trocas com o Oriente que começaram a desestabilizar o sistema feudal, a que se somaram os abalos na estrutura interna, ou a luta de classes, que é a perspectiva de Dobb.
A rigor, creio que não é necessário alinhar-se sectariamente com uma das teses, excluindo a outra. A historiografia realizada após o debate Dobb-Sweezy revela que os processos na verdade convergem para uma combinação das duas teses. O que Singer poderia ter feito, com proveito para sua própria tese, e para os leitores, teria sido percorrer um pouco aquela rica controvérsia. A segunda questão refere-se à assunção um tanto esquemática da dicotomia infra-estrutura e superestrutura. A progressão teórica e analítica do marxismo, desde os pais fundadores, avançou bastante em termos de correção dessa separação rígida, dessa espécie de via de mão única da infra para a superestrutura. A aceitação, sem nuances, da dicotomia, neste como em outros casos, pode levar à inexorabilidades históricas, “leis de desenvolvimento”, que retiram o caráter de fautor da história ao próprio conflito de classes.
Não é a posição de Singer, haja vista seu esforço em distinguir entre revolução social e revolução política. Em outras palavras, embora a via de mão única esteja mais que sugerida, às vezes mesmo ferreamente explicitada em Marx e Engels, do ponto de vista da crítica que a obra de Marx é, a perspectiva de uma história aberta é muito mais fecunda.
A recuperação das experiências do cooperativismo, como uma forma de luta contra a exploração e uma proposição alternativa ao capitalismo, com a revalorização de uma figura como Robert Owen, é um dos pontos altos desse pequeno belo livro. Aqui, juntam-se dialeticamente resistência e alternativa. Uma vez mais, como já se frisou, remando contra a maré, Singer aponta para as possibilidades da ação concreta de trabalhadores/consumidores, em movimento que, em conjunção com o exercício sindical e a radicalização na política, já produziu modificações e reformas no capitalismo, que lhe conferiram sua atual estrutura e perfil.
Em outras palavras, bem de acordo com a tese principal que adota, a da convivência transitória entre vários modos de produção na mesma formação social -posição, aliás, bastante controversa-, as lutas dos trabalhadores não apenas não foram equívocos: elas fazem parte do grande movimento civilizatório da modernidade, são, talvez, seu núcleo mais importante. Como a discussão de uma obra intelectual nunca deve ser uma “ação entre amigos”, convém continuar cobrando de Singer, nessa parte, uma discussão teórica mais densa sobre a teoria do cooperativismo, sobretudo no que diz respeito ao estatuto e função do excedente, que é o ponto de toque de todos os modos de produção.
A última parte do livro em alguma medida repete argumentos e exposições que já constavam das três primeiras, coisa que o autor adverte logo de saída. Constitui um esforço de atualização para dar conta das transformações do capitalismo no século que finda. As guerras mundiais, a revolução russa e as outras de inspiração socialista e malbaratamento burocrático, as políticas anticíclicas aplicadas como reação à grande depressão, o nazismo, aparecem num quadro extremamente sintético, não apenas para, de leve, não desconhecer as importantes mutações da formação social capitalista, mas, além disso, para reafirmar a tese da crise do capitalismo. 
Tese que não é produzida apenas pelo desenvolvimento das forças produtivas que leva à desapiedada concorrência predatória -chamada por Schumpeter de “destruição criadora”-, mas pela proposição, por adversários históricos do capitalismo (trabalhadores/consumidores) de medidas que são implantes socialistas, um novo modo de produção lutando por emergir. Aqui comparece com ênfase a previdência social, a seguridade social em sentido mais amplo, como uma medida anticapitalista, criando mecanismos que reagem ao desemprego causado pela “destruição criadora” que desobedecem, rigorosamente, à lei do valor: são “antimercadorias”.
Aqui também poderíamos pedir a Singer que explorasse mais esse rico veio. Mas, bem de acordo com sua posição, que não é nova, e percorre todos os textos produzidos ao longo de uma brilhante e profícua carreira intelectual e política, Singer sabe que o êxito do modo de produção socialista implantado ainda dentro do capitalismo, para se tornar hegemônico, depende sobretudo dos próprios trabalhadores. Não há “leis de desenvolvimento” da história que transformem qualquer classe ou grupo social em predestinada, se ela própria não se der essa tarefa; o desmonte neoliberal, que o autor discute brevemente nessa última secção, é a prova de que não há conquistas definitivas, se a luta social não continuar sendo travada em todos os lugares materiais e simbólicos do conflito.
Outra vez, devido ao intenso debate que se produz sobre a perda de centralidade do trabalho na sociedade contemporânea, nas pistas de um Habermas ou um Offe, teria sido interessante que Singer discutisse essa questão, tendo em vista que, nos termos em que ele propõe a discussão, a centralidade do trabalho continua a ser a pedra angular do modo de produção capitalista.
Os pedidos de complementação de certas discussões são cobranças, sim. Não no sentido menor e mesquinho de quem quer ver pêlo em ovo, mas devido à urgência do debate e à própria história do autor: sabemos que esse utopista militante, que além de sua militância política arquiconhecida no socialismo democrático, dirige, concretamente, um grupo na USP que dá assistência a projetos de cooperativas, continuará, pela vida afora, sua utopia militante. Ave, Singer!


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