Sobre economia solidária e autogestão

  Participação de Paul Singer no Seminário Internacional do Núcleo de Economia Solidária e da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP, 2003.

Bom dia gente.

Eu queria, antes de mais nada, dizer que esse é um momento extremamente importante na minha vida. Estou apenas há um mês fora daqui, mas é como se fosse dez anos. Estava com muita saudade de cada um de vocês e do conjunto; da Incubadora, do NESOL e da USP.

De modo que poder estar aqui é um privilégio e eu vou me esforçar pra gente repetir isso muitas vezes.

O assunto é economia solidária, eu mesmo sugeri que nós começássemos esse Seminário por uma discussão conceitual. E não é por que é bonito, na academia, fazer conceito, mas porque a construção de alguma coisa nova exige a reconceituação incessante daquilo que pretendemos. Portanto, não é uma discussão que vai acabar de repente; a não ser que nós fracassemos completamente.

Eu queria começar por contar uma história que é do meu novo emprego, de Secretário Nacional de Economia Solidária, e que tem muito a ver com o que ouvimos, tanto do professor Coraggio, como do Fernando Haddad.

Não sei se todos vocês sabem, mas um dos projetos mais queridos do nosso Ministério do Trabalho é completar a obra da princesa Isabel e acabar com o trabalho escravo no Brasil. A escravidão não terminou.

          O Ministério do Trabalho organizou investidas contra o trabalho escravo, , juntamente com a Polícia Federal, com fiscais do trabalho que não são do Estado ou da região – senão não se encontra nada –, e junto com a Comissão Pastoral da Terra, que recebe as denúncias de escravização quando algum trabalhador logra fugir. Esses grupos móveis vão até lá, libertam os trabalhadores e obrigam os escravizadores a pagar uma certa quantia pelo trabalho que foi realizado e geralmente não pago. E além disso o governo garante três meses de seguro desemprego a esses trabalhadores e que eles voltem a seus lugares de origem.

Desse jeito poderíamos acabar com a escravidão? Se pudermos multiplicar a fiscalização, a repressão, será que um dia acaba a escravidão em nosso país?

Numa reunião recente lá no Ministério a Secretária Nacional de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela nos contou que desse jeito nós não acabamos com a escravidão; ela na verdade se reproduz sempre. Numa das missões em que ela foi, um dos trabalhadores que ela libertou disse “a senhora não se lembra de mim? A senhora já me libertou pela terceira vez.” O que significa isso? Significa que os trabalhadores que se deixam escravizar se arriscam a isso porque senão morrem de fome. Eles vêm das áreas mais pobres, dos Estados mais pobres do Brasil, que são Piauí e Maranhão. Como eles são recambiados, nós temos a lista dos municípios que fornecem mão-de-obra para ser escravizada. Não é na África não gente! É no próprio Brasil! .

E se eles são devolvidos a seus lugares de origem e nada muda é óbvio que num próximo momento, quando chega o “gato” pra aliciar trabalhadores, pra levá-los   a fazendas distantes, eles obviamente não têm outra alternativa a não ser aceitar o convite,  e se arriscarem a voltar a ser escravizados.         Não temos idéia de quantas dezenas de milhares, ou talvez centenas de milhares de trabalhadores se submetem à escravização.          O único jeito, segundo Ruth Vilela, pra acabar com a escravização no Brasil, é promover o desenvolvimento econômico nas regiões em que os trabalhadores são recrutados para que as pessoas possam ganhar honestamente a vida sem se submeter a isso.

Então ela convocou a Secretaria Nacional de Economia Solidária, perguntando no que é que nós poderíamos ajudar na luta pela erradicação da escravização no Brasil.        Sugerimos que esse esforço, aliás, ela já tinha essa idéia, fosse mais amplo, interministerial: Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério do Meio Ambiente e, sobretudo, o MESA, o Ministério de Segurança Alimentar.

Eu sugeri, e outros concordaram, que o Programa Fome Zero fosse a linha de frente desse processo de desenvolvimento local nas áreas que fornecem escravos,

Agora, como desenvolver municípios carentes de tudo? Em que as pessoas são invisíveis.   Esses escravos modernos não têm certidão de nascimento, eles não existem civilmente; e quando morrem também não têm certidão de óbito, não deixam rastro da sua passagem pela Terra. Então é preciso lhes dar cidadania, é preciso documentá-los, e é preciso criar um processo de auto-resgate, auto-redenção, emancipador, em última análise. E pra isso eu suponho que a economia solidária tem tudo a ver. Ou se não tivesse a ver, não teria muito sentido.

Quero entrar agora na discussão conceitual propriamente dita. Historicamente a economia solidária é o resultado de diferentes concepções da boa sociedade. Economia solidária obviamente não é uma constatação científica do que vai acontecer. Ela é um ato de vontade de construir, por lutas e outras formas, uma sociedade, vamos dizer, não ideal mas melhor do a que nós temos aqui. Por isso que temos o direito de conceber economia solidária de acordo com nossos princípios e de acordo com nossos valores. Por isso que há tantas concepções diferentes de economia solidária. Eu acho essa diferença desejável. Eu acharia uma perda se nós nos colocássemos agora em acordo e disséssemos ” economia solidária é isso e quem não achar isso está errado”.

Agora a troca de idéias, a troca de propostas, que está começando a acontecer, é

muito produtiva.

Os estudos históricos são muito importantes para alimentar a nossa ação; o Coraggio nos convoca a pensar estrategicamente, significa, a prazo mais longo. Nós não conseguimos pensar a prazo longo se nós não conseguimos entender o que se passou.

Então, olhando historicamente, a economia solidária, a meu ver, é herdeira de múltiplas concepções, mas três merecem menção. E elas explicam as diversidades de entendimento e as ênfases diferentes. Geralmente é mais uma questão de ênfase do que propriamente de diferença.

Eu diria que, em ordem de importância, a mais importante não é a marxista, mas a religiosa. Cristã, judia, provavelmente muçulmana, budista, ou seja, são concepções transcendentais do homem e do mundo que preservaram valores solidários; e os socialistas cristãos. foram os primeiros formuladores, não os únicos, mas os primeiros a dizer que a emancipação dos trabalhadores, a emancipação do homem, terá que ser sua própria obra. Não poderá ser feito de cima pra baixo, mediante a conquista revolucionária do poder de Estado.

Essa foi uma grande discussão na época da I e da II Internacional, e que volta agora. Uma grande parte, vamos dizer, da motivação da economia solidária na Europa é exatamente essa idéia que o Fernando Haddad expôs: de que fracassou a tentativa histórica de mudar a sociedade mediante o poder de Estado.

Uma outra corrente, na mesma direção, mas com outra origem, são os anarquistas. O anarquismo nunca desapareceu, vocês sabem disso. E nós da Incubadora tivemos companheiros, espero que ainda tenhamos, anarquistas.  É uma tradição bem diferente da religiosa, muitas vezes anti-religiosa, mas que comunga com essa idéia básica de que a transformação social terá que começar debaixo, das raízes da sociedade, e que o poder governamental, o melhor seria que desaparecesse. Essa é a marca do anarquismo e das suas propostas, que, sempre geram controvérsias, algumas delas bastante úteis.

A terceira corrente é a marxista. O marxismo sempre oscilou entre uma concepção revolucionária, democrática, emancipadora, com cooperativas, com sindicatos etc. etc., e a concepção de que é preciso colocar o Estado capitalista a serviço da classe trabalhadora.  Isso é uma frase de Marx. Eu descobri recentemente e quase caí, porque nunca imaginei que ele pudesse dizer uma coisa dessas; mas ele disse isso nos debates da I Internacional e depois nos debates sobre a Social-Democracia alemã. Lembre-se que o estado de bem-estar social nasceu na Alemanhade Bismarck, em 1880, vinte a trinta anos antes dos demais países industrializados. E isso foi visto por Marx e por Engels como uma via absolutamente essencial de transformação social: a conquista do estado de bem-estar social, a conquista dos chamados direitos sociais; além da conquista do sufrágio universal.

Essas três correntes, não se excluem inteiramente, e ao longo do tempo colaboraram, sob inúmeras formas, porque o que elas têm em comum é a crítica ao capitalismo, é a rejeição ao capitalismo enquanto forma definitiva de desenvolvimento e de existência da sociedade humana.  Aí não há diferenças de radicalidade: mesmo os reformistas, os revisionistas de origem marxista, têm, por propósito estratégico, um outro tipo de sociedade.

Existem diferentes ênfases em economia solidária. A minha é a auto-gestão. Para mim o que diferencia a economia solidária de outras formas de organização da produção, do consumo, da distribuição, é a ausência de distinção de classes entre os que se organizam para essas atividades, a democracia na unidade de produção, distribuição e assim por diante.

Ontem eu tive, por indicação de um companheiro (Valmor), ocasião de ler a lei que institui a Superintendência da Economia Solidária no governo da Colômbia.  A lei, que institui a Superintendência da Economia Solidária, (a abreviatura dessa instituição colombiana é Super Solidária) define a economia solidária como a economia da auto-gestão.      No entanto, na Europa, onde geralmente as instituições da economia solidária também são autogestionárias, há ênfase em outras coisas, como o caráter comunitário e ecológico delas. A inserção da economia solidária está se dando de maneira extremante interessante e nova no campo da esquerda mundial,

São diferenças de ênfase, mas elas dão diferenças de prática bastante grandes. O viés político-econômico, que eu acho que o professor Coraggio partilha –  quando ele volta e insiste que nós precisamos retomar a crítica da economia política, e eu concordo inteiramente –; ele se distingue muito do nosso, tanto no caso alemão como no francês, em que a economia solidária é o que eles chamam de “serviços de proximidade”, em que a solidariedade se manifesta concretamente em cuidar de velho,  doente,  ou de criança abandonada  ou em risco.  Esta ajuda direta é o traço que distingue a economia solidária de lá da nossa, na América Latina.

Essas diferenças de ênfase são em parte de tradição política, de pensamento e lutas, e em partes de realidades. A realidade é a crise social que existe na Europa, que tem outras características, que não aquelas que existem na Argentina e no Brasil, que me parecem muito idênticas.

A economia solidária é um projeto revolucionário, é um projeto pra uma outra sociedade, e isso nos permite formulá-la como nós desejamos. No entanto nós não somos utopistas no mal sentido da palavra, ou seja, nós não ficamos numa discussão pura do que é bom: o que é a natureza humana?  Nós queremos também fazer com que essa concepção, esse programa tenha viabilidade de conquistar as mentes e os corações dos nossos outros cidadãos, senão todos, muitos, para que ela possa se transformar em prática.

Nesse sentido, a idéia de Marx e Engels, de um socialismo científico, ou de uma economia solidária científica, tem muita razão de ser; ou seja, nós não podemos conceituar a economia solidária somente a partir dos nossos desejos e dos nossos valores.

Por outro lado, o socialismo científico é um oximoro: ele é uma contradição em si porque o socialismo é um desejo, um projeto. E a ciência trata basicamente do que existe e do que existiu.  Ela pode fazer projeções, mas na realidade, a base é descobrir o que está acontecendo. Então, o socialismo científico é uma combinação contraditória entre um projeto desejável e o esforço científico para descobrir para onde caminha a sociedade realmente existente.

Eu proponho que nós trabalhemos dessa forma contraditória.

O desafio, sobretudo numa universidade, nossas universidades, está em conseguirmos fazer trabalhos de investigação e de docência significativos para a nossa ação prática.

Queria dizer que, na realidade, a partir de um certo nível de prática, de educação e ciência em nossas universidades, docência e investigação não se distinguem mais, ou não deveriam se distinguir mais, se nós levarmos a sério a idéia de que a docência se faz através de um processo de troca de saberes, e não, como dizia ironicamente Paulo Freire, de uma transmissão unilateral do saber do professor ao aluno, . Na realidade, encontrar gente de outra geração, com outra história de vida etc., significa que eles têm outros saberes, tão legítimos quanto o meu que já fui aposentado por idade. E que é a troca desses saberes que é fundamental, é assim que se gera conhecimento, é assim que se gera hipóteses e teorias científicas, é assim que se faz ciência.  Pode-se ir a campo e aplicar questionários; isso é uma troca de saberes entre quem aplica o questionário e quem o responde: ambos apreendem, um do outro.  Portanto, entre docência e investigação, deveria haver proximidade cada vez maior.

O grande desafio está em levar esse processo interno da universidade, que se dá entre nós, em inúmeros seminários, discussões, mesas-redondas, e até em aula, em certa medida, pra fora.

De modo que eu queria terminar retomando o tema: o que nós entendemos por extensão universitária?

Há uma boa tradição, a qual, a meu ver, nós nos filiamos: que é a de colocar a universidade, não a serviço da sociedade, mas a serviço dos que são oprimidos, dos que são explorados, dos que carecem.

Nós não inventamos isso! Lá na Faculdade de Direito, o Grêmio XI de Agosto atende a pessoas pobres há décadas.  Quando eu era estudante universitário há mais de quarenta anos, já havia um escritório em que os estudantes de Direito protegiam trabalhadores, impetravam habeas corpus, enfim, se envolviam diretamente no apoio à população em luta, ou não em luta. Poderia falar na área de Educação, na área de Saúde, na área de Engenharia, afinal de contas de onde é que vem o Integra? Primeiro escritório piloto da Poli, não é verdade?

Isso é uma luta gente! Isso é o tipo de extensão que a Incubadora está levando adiante.

A universidade se insere numa sociedade de classes que estão em luta. A universidade, a palavra diz isso, pretende ser universal. Eu não abriria mão disso:  a universidade ou é universal, ou ela vai sofrer muito. Mas pra isso ela tem que se relacionar com todas as classes sociais. E não só com a classe oprimida.  Passamos décadas fazendo movimentos de greve, dizendo que nós tínhamos que transformar a universidade numa arma da luta pela emancipação, pelo resgate dos mais pobres. É isso sim! Mas não só. A universidade tem que se relacionar com o capital, tem que se relacionar com o Estado, tem que estar com as antenas ligadas pra saber o que se passa na área tecnológica, na área das grandes finanças, na economia global, e também, no mundo do trabalho, ou a economia do trabalho, ou a sociedade do trabalho.

Porque é nessa universalidade da universidade, é nessa capacidade de se relacionar, dando MBA para executivos, e também dando MBA para favelados, que nós conseguimos construir um conhecimento que seja digno do nome, e que tenha de fato um certo caráter científico.

De modo que esse é um momento muito feliz em que o NESOL se apresenta à Universidade. O NESOL é um Núcleo de Apoio à Extensão. Ele não vai fazer a extensão diretamente, pelo que eu entendo; a extensão vai ser feita pela Incubadora. Agora, a Incubadora, desde que ela surgiu, não faz muito tempo, cinco anos, ela sempre teve um lado de investigação, um lado de estudo, seminários, e muito cedo os estudantes da Incubadora fizeram trabalhos de iniciação científica sobre a sua prática; e os professores que se ligaram à Incubadora começaram a usar a temática da economia solidária nos seus cursos, nas suas investigações, nas suas teses. E agora, cinco anos depois, temos uma safra, eu diria, muito bem-vinda, brilhante, de alunos que se formaram, vários deles já fizeram sua dissertação de mestrado, eu estive na banca de quase todos, agradeço a distinção e a oportunidade, sério! e aprendi muito com elas. É uma outra visão, de uma outra geração.

Nós queremos prosseguir isso. Essa é a proposta do NESOL: criar uma continuidade orgânica entre a Incubadora e o Núcleo, através de docência, através de investigação, e através da atividade militante da própria Incubadora.

Eu imagino que todos os membros do NESOL terão vindo da Incubadora, e muitos continuarão com atividades junto a ela. Esse é o apoio que o Nesol dará à Incubadora. Tal como por exemplo, organizar um seminário como esse, que, é um apoio importante, intelectual, político, ideológico, à atividade da Incubadora; mesmo no dia-a-dia: eu acho que a tradição da Incubadora da USP, de estar fazendo seminários, produzindo intelectualmente, ao mesmo tempo em que realiza sua missão militante nas periferias miseráveis da nossa metrópole, é fundamental.

Então, só pra resumir e terminar, nós não sabemos exatamente o que é economia solidária, porque na ação nós vamos construindo esse conceito, e é na ação também que ele vai se transformando. Cada conquista é ao mesmo tempo uma lição e conseqüentemente uma contribuição para o enriquecimento e a transformação do que nós entendemos por economia solidária.

A economia solidária alcançou uma dimensão no Brasil que jamais imaginaríamos   possível em tão pouco tempo e ela vai continuar crescendo, e, conseqüentemente, as oportunidades que nós temos de usar a metodologia da universidade para apreender e fazer luz a essa jornada serão cada vez mais numerosas. Obrigado.

 

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