- Este prefácio tem como objetivo oferecer um enquadramento esclarecedor dos textos que compõem o livro. Em primeiro lugar, assinala sinteticamente os aspetos mais significativos da vida e dos vários protagonismos cívicos e intelectuais do autor. Em segundo lugar, tendo em conta respostas dadas por Paul Singer a diversos entrevistadores, mostra o essencial do que ele pensa sobre a economia solidária, dando a medida em que contribuiu para o seu desenvolvimento no Brasil e evidenciando os caminhos que ela aí tem vindo a percorrer. Por último, contém um breve comentário ao conjunto de textos que compõem o livro, de modo a salientar a lógica que os congrega e a chamar a atenção para a sua complementaridade.
É uma honra para esta coleção incluir um livro de Paul Singer, economista brasileiro de grande prestígio, professor universitário e político, que é um autor de referência no campo da economia solidária , quer na América Latina, quer na Europa, sendo também um reputado conferencista internacional.
- Paul Singer nasceu em Viena, na Áustria, no dia 24 de março de 1932, oriundo de uma família de pequenos comerciantes judeus . Ameaçada pela ocupação nazi alemã, a sua família viu-se forçada a emigrar para o Brasil em 1940, tendo-se fixado em São Paulo.
Em 1951 concluiu o curso de eletrotécnica no ensino médio da Escola Técnica Getúlio Vargas de São Paulo, exercendo a profissão entre 1952 e 1956. Filiou-se no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, tendo participado ativamente no movimento sindical. Como trabalhador metalúrgico, foi um dos líderes da histórica greve dos 300 mil, que paralisou a indústria paulista por mais de um mês, em 1953.
Em 1954, adquiriu a cidadania brasileira. Em 1959, concluiu o curso de Economia da Universidade de São Paulo (USP), onde ingressara em 1956, após ter abandonado a profissão de metalúrgico.
No decorrer da segunda metade dos anos 50, militou no Partido Socialista Brasileiro (PSB), tendo sido um dos fundadores da Organização Revolucionária Marxista, Política Operária (Polop), oriunda da ala esquerda desse partido.
Em 1960, Paul Singer iniciou funções docentes na Universidade de São Paulo (USP). Em 1966, doutorou-se em Sociologia na mesma Universidade. Depois de um breve estágio nos USA, para estudar Demografia, em Princeton, voltou à USP como Professor Titular, nas Faculdades de Economia, Administração e Contabilidade. Em 1968, apresentou sua tese de livre-docência, Dinâmica populacional e Desenvolvimento.
Nesse mesmo ano, retomou suas atividades como professor da USP até lhe terem sido retirados os seus direitos políticos pelo poder ditatorial imposto pelo golpe de Estado militar de 1964, através do Ato Institucional nº 5 (1968) e ter sido aposentado compulsoriamente, por causa das suas atividades políticas, em 1969.
Paul Singer, ao lado de vários outros professores e investigadores expulsos da USP, participou na fundação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), uma importante instância científica na área das ciências sociais e um importante foco intelectual de resistência à ditadura.Voltou a ensinar em 1979 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
No ano seguinte, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Na PUC, ensinou apenas durante quatro anos, mas continuou a trabalhar no CEBRAP até 1988.
No ano seguinte, foi convidado pela Prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, para ser Secretário Municipal de Planejamento de São Paulo , cargo que desempenhou durante esse mandato (1989/93).
Especialista e grande impulsionador da economia solidária no Brasil , Paul Singer participou na criação da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP em 1998, tendo sido convidado a assumir o cargo de seu coordenador académico .
Em 2003, foi nomeado pelo Governo Federal do Presidente Lula da Silva como Secretário Nacional de Economia Solidária (SENAES), no Ministério do Trabalho e Emprego. Foi reconduzido no mesmo cargo no mandato seguinte, bem como nos mandatos da Presidente Dilma Rousseff.
Em 2015 foi tornada pública a hipótese do seu afastamento da SENAES, no quadro dum reajustamento interno do Governo de Dilma, já então em dificuldades, destinado a robustecer a coligação que a apoiava. Houve uma explícita resistência pública a esse afastamento, nomeadamente por parte dos múltiplos protagonistas da economia solidária no Brasil. Essa substituição não chegou então a consumar-se.[1]
Mas em 11 de maio de 2016, depois de 13 anos à frente da Secretaria Nacional de Economia Solidária, Paul Singer viria a ser afastado em simultâneo com a Presidente Dilma, pelo golpe de Estado que levou ao poder o anterior Vice-presidente e abriu caminho a uma profunda reversão política e social . Foi gravemente lesada a democracia, foi muito reforçada a hegemonia neoliberal, tendo-se entrado numa deriva conservadora anti-democrática , cujo horizonte se fecha numa dramática interrogação.
Pouco tempo depois, em 8 de junho de 2016, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária tornou público o seu repúdio perante a substituição de Paul Singer, considerando que ela “representa mais um enorme retrocesso neste contexto de desmonte das políticas sociais levado a cabo pelo governo interino ilegítimo instalado a partir do afastamento da presidenta Dilma Rousseff no último dia 11 de Maio”.
“É inaceitável que a Secretaria Nacional de Economia Solidária, fruto de uma demanda e conquista histórica do movimento de economia solidária, chefiada durante 13 anos pelo Prof. Paul Singer e sua equipe, seja rebaixada e instrumentalizada para operacionalizar o golpe em curso no âmbito do Governo Federal”.
“Nesse sentido, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária não reconhece a indicação do novo secretário interino e reforça seu posicionamento em defesa do Estado Democrático de Direito e do mandato da presidenta eleita, Dilma Rousseff”.
Paul Singer é autor de muitos textos publicados em revistas e noutros meios de comunicação social, bem como de dezenas de livros, entre os quais se destacam: Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002; Para entender o mundo financeiro. São Paulo: Contexto, 2000; O Brasil na crise: perigos e oportunidades. São Paulo: Contexto, 1999; Globalização e Desemprego: diagnósticos e alternativas. São Paulo: Contexto, 1998; Uma Utopia Militante. Repensando o socialismo. Petrópolis: Vozes, 1998; O que é Economia. São Paulo: Brasiliense, 1998; O Capitalismo – sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. São Paulo: Moderna, 1987; Repartição de Renda – ricos e pobres sob o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 1986; A formação da classe operária. São Paulo: Atual, 1985; Dominação e desigualdade: estrutura de classes e repartição de renda no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; O que é socialismo hoje. Petrópolis: Vozes, 1980; Curso de Introdução à Economia Política. Rio de Janeiro: Forense, 1975; Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana. São Paulo: Editora Nacional, 1969.
- Dará maior nitidez ao sentido deste livro e ao alcance dos textos que o integram, lembrar-se aqui o que é a economia solidária na perspetiva de Paul Singer. Ter-se-á assim acesso a uma maior explicitação do essencial do seu pensamento, podendo observar-se plenamente a riqueza das suas ideias e a sua profunda imbricação nas práticas da economia solidária, que as oxigenam ao mesmo tempo que delas se alimentam.
E isso é tanto mais importante quanto essa posição não coincide, por completo, com o modo como é entendida a economia solidária, quer em Portugal, quer nos países da Europa em que ela está presente, nomeadamente, em França e em Espanha.
Aliás, são diversas as perspetivas através das quais se encara a economia solidária, mesmo dentro de cada país. Numa abordagem genérica e algo simplificadora, podem distinguir-se dois tipos de posições. Num deles, identifica-se a economia solidária com uma expressão da solidariedade humana, largamente marcada por uma ótica beneficente, desligando-a de qualquer ambição de mudança do tipo de sociedade atual, ou seja, de superação do capitalismo. No outro, sem menosprezo pela sua força como resposta imediata à desigualdade e ao sofrimento, valoriza-se na economia solidária o seu potencial de transformação social. De uma transformação social que aponte para um pós-capitalismo suscetível de consubstanciar os seus valores emancipatórios, libertadores, democráticos e solidários. Muitas vezes, nas posições concretas de cada protagonista ou de cada doutrinador, combinam-se estas duas linhas de orientação geral.
Também difere o grau de coincidência entre o que se entende por economia solidária e o que se entende por economia social, havendo quem distinga com nitidez uma da outra, quem as aproxime até uma quase sobreposição e quem as congregue numa única expressão compósita. Paul Singer valoriza muito o enraizamento da sua perspetiva na realidade brasileira, olhando-a desse modo com autonomia, em face do modo como é olhada noutras paragens. E assim olha para as experiências, ideias e perspetivas delas oriundas, predominantemente, como realidades irmãs, sem dar centralidade a um apuramento detalhado das diferenças que entre elas possam existir e valorizando sinergias e proximidades. Isso não impede que seja largamente dominante nos seus textos o uso da expressão “economia solidária”.
Para Paul Singer, a economia solidária está firmemente ancorada numa ambição de superar o capitalismo. Encara-a como um espaço que incorpora as tradições democráticas e emancipatórios do cooperativismo, do mutualismo, do solidarismo democrático e do associativismo popular. Envolve num olhar crítico, mas fraterno, os protagonistas que integram os movimentos sociais que nela desaguam, distinguindo os que, para ele, exprimem com plena fidelidade os seus valores, inscrevendo-se assim sem ambiguidade numa trajetória emancipatória, dos que tolhidos por contaminações suscitadas pela lógica dominante tergiversam, deixando dissipar-se a sua autenticidade e o seu ímpeto futurante.
A sua radicalidade anticapitalista está sempre impregnada por uma valorização inequívoca e incondicional da democracia, como horizonte irrenunciável de qualquer sociedade humana e como matriz fundadora de qualquer modelo pós-capitalista digno de esperança.
Este dualismo é uma atmosfera presente em todo o seu pensamento, estando nele incrustado virtuosamente. Mas só podemos compreender plenamente todas as suas implicações, se o analisarmos à luz do percurso concreto feito na sociedade brasileira pelas práticas de economia solidária. Reciprocamente, seria estéril esquecer-se que as ideias e o protagonismo pessoal de Paul Singer foram, pelo seu lado, um elemento relevante na irradiação da economia solidária no Brasil e no rasgar dos seus horizontes.
Esta simbiose transparece nos textos de Paul Singer. Ele olha sempre para a realidade com abertura e generosidade, aceitando ser permanentemente interpelado por ela, mas sem nunca abrandar a sua exigência crítica nem esquecer as suas próprias posições perante a sociedade e a vida. Nunca renunciando ao seu papel pessoal e sempre fiel às suas responsabilidades, sempre se assumiu como um militante entre outros, como um camarada dos seus camaradas. Pode dizer-se que deu vida ao lema de Montesquieu: “Para se fazer grandes coisas não se deve estar acima dos homens, mas junto deles.”
- Para conhecermos as posições de Paul Singer quanto à economia solidária e compreendermos assim melhor o que neste campo se passa no Brasil, nada melhor do que seguir as palavras que ele próprio foi proferindo em diversas circunstâncias.
Segundo dados que acompanham uma entrevista que deu em Dezembro de 2014[2] e à qual pertencem os excertos que se seguem, o Brasil contava então com mais de 30 mil empreendimentos solidários, em vários setores da economia, com destaque para a agricultura familiar. Eles geravam rendimentos para mais de 2 milhões de pessoas e movimentavam então anualmente cerca de 12 bilhões de reais.
Tendo-lhe sido perguntado, “Quando e como surgiu a economia solidária no Brasil?”, Paul Singer, respondeu:
“Ainda sem esse nome, a economia solidária surgiu no Brasil no bojo da mais terrível crise pela qual o País passou desde Pedro Álvares Cabral. Foi a crise dos anos 70, que atingiu toda a América Latina, resultado do choque do petróleo. Os países não produtores de petróleo ficaram com dívidas enormes. Tiveram que comprar petróleo a preços cinco vezes maiores dos que pagavam antes da crise. E o Brasil foi um dos que mais se endividaram. Não tinha opção. O País já estava no processo de abertura, mas o regime estava sem nenhuma preparação para enfrentar o desemprego, que atingia milhões de brasileiros. Esse era o quadro.”.
Foi-lhe depois perguntado se através da economia solidária se enfrentou o desemprego, a fome e a miséria de milhões de brasileiros? Paul Singer respondeu: “Foi isso mesmo. Quem tentou fazer isso de uma forma correta foi a Igreja, através da Cáritas, que começou a organizar os desempregados para que eles voltassem a viver, a ganhar. Isso acabou sendo o impulso inicial para a economia solidária no Brasil. Portanto, a semente da economia solidária foi plantada nos anos 80 por uma ação extremamente adequada, e no momento certo, da Cáritas. Alguns anos depois, o esforço da Cáritas foi secundado pelos sindicatos e pelas universidades. A essa altura eu já estava envolvido.”
E quanto ao papel dos sindicatos nesse processo, prosseguiu mais adiante: “Os sindicatos viram que os trabalhadores de empresas que iam falir – e muitas faliram nessa época – poderiam arrendar a massa falida, preservar a empresa e, portanto, seus próprios empregos. Os primeiros casos causaram muita sensação: fábricas sem patrões. Logo mais, isso se tornou um modelo. Surgiu a Anteag (Associação de Empresas Recuperadas), que se especializou nisso, a partir do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos). Então, foi o início da economia solidária no Brasil. Os sindicatos apoiaram seus trabalhadores na formação de cooperativas de trabalho.”
Depois, para aprofundar o esclarecimento de como surgiu o conceito e o nome economia solidária, Paul Singer, recordou o pioneirismo do sociólogo, ativista social e militante político, Betinho (Herbert José de Sousa) que ao liderar a campanha do “Natal sem Fome”, envolvendo milhões e milhões de brasileiros, se inscreveu antecipadamente na história da economia solidária. E explicou:
“Começou-se a perceber que era preciso fazer alguma coisa direta contra o desemprego. Como a campanha do Betinho avançou bem, tomamos a decisão de nos reunirmos nos anos 1990 (92 e 93) para lutar diretamente contra o desemprego, fomentando a economia solidária, que ainda não tinha esse nome. Incentivando a autoiniciativa económica de trabalhadores associados.
Inclusive a campanha do Betinho foi muito apoiada pela Igreja. Ele mesmo era um católico, um cristão socialista. Militante da AP (Ação Popular, organização da esquerda cristã). Bem, esse foi o passo decisivo para a criação das incubadoras e cooperativas populares. Não surgiram imediatamente, mas não demorou muito. A primeira cooperativa foi criada no Rio de Janeiro, creio que em 1994, e agiu especificamente na Maré (Complexo da Maré). As incubadoras tecnológicas e cooperativas populares foram decisivas para o desenvolvimento da economia solidária no Brasil.
A origem dessa primeira incubadora vem da situação trágica dos trabalhadores daquelas favelas, que ficam ao redor do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). E junto ao Instituto Oswaldo Cruz existe a Faculdade Nacional de Saúde Pública. […]
Os professores se reuniram e discutiram então o que fazer. O fato é que eles acharam que cooperativa seria a solução. Então entraram em contato com os vizinhos e sugeriram que formassem uma cooperativa de trabalho na própria instituição.”
Inquirido sobre o seu protagonismo pessoal no desenvolvimento da economia solidária, Paul Singer retorquiu: “Havia professores de Campinas, eu pela USP, mas não éramos muitos. […]. Em 1995, fizemos a primeira reunião brasileira do que viria a ser economia solidária, na PUC de São Paulo. A imprensa não dava nada disso, como até hoje. O MST[ Movimento dos Sem Terra] fazia economia solidária sem dar esse nome. O Gonçalo Guimarães que até hoje dirige a mais antiga incubadora do Brasil, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, também. Vieram umas 30 pessoas e foi surpreendente.
O MST já havia conseguido assentar muita gente e em 1983 já havia decidido que em todo assentamento haveria cooperativas. Eles foram a essa reunião na PUC contar essa história. O MST tinha apoio da Cáritas, que o ajudou a desenvolver a agroindústria nos assentamentos.
[…]O nome surgiu durante a campanha eleitoral de 1996 para a prefeitura de São Paulo. A candidata do PT foi a Luiza Erundina, que acabou perdendo para o candidato do Paulo Maluf, o Celso Pitta.[…]
Fizemos essa proposta de organizar os desempregados em cooperativas ao comitê do programa da campanha da Luiza Erundina, dirigido pelo Aloizio Mercadante. Ele acatou e perguntou: Singer como é que você chama esse treco aí que você está propondo? Respondi: nem pensei nisso. Aí ele me perguntou se não queria chamar de economia solidária. Na hora percebi que era o melhor nome possível.”.
Quanto à importância dada à economia solidária pelo PT[Partido dos Trabalhadores], Paul Singer mencionou o lançamento de um debate sobre o tema no seio desse Partido em 1993 : “Vários intelectuais participaram. A economia solidária não era muito conhecida na época, mas organizamos debates inclusive sobre esse tema. Depois, em debates sobre desemprego, o PT entendeu que a economia solidária poderia trazer respostas para a questão e o partido assumiu o tema. Foi depois de todos esses debates que Lula colocou a economia solidária no programa dele.”
Foi por isso com naturalidade, na sequência da eleição de Lula como Presidente da República, que em 2003 foi criada a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES). A propósito disso, Paul Singer, seu primeiro titular, esclareceu: “A SENAES faz parte do Ministério do Trabalho e Emprego[MTE] porque a economia solidária se reconhecia como parte do movimento operário.[…] Uma das coisas que me deixam orgulhoso é que os principais movimentos sociais do Brasil hoje estão na economia solidária. Não é que apoiem de fora, fazem economia solidária. E as mulheres são a vanguarda da economia solidária, no Brasil e em outros países.”
E ao ser questionado sobre a importância da SENAES para a instituição no Brasil de uma política pública da economia solidária disse: “A economia solidária só existe no Brasil todo, acredito, por causa da secretaria. E do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, nosso grande parceiro. Sem o Fórum não tínhamos avançado. Ele foi criado junto com a secretaria, somos irmãos gêmeos. Uma grande parte das políticas em economia solidária surgiu por meio do Fórum. O próprio Fórum foi fomentando a criação de fóruns estaduais e hoje há ainda centenas de fóruns municipais. Mais da metade dos estados têm hoje leis de economia solidária, nós temos convénios com eles e com centenas de municípios.”
Traçado este breve panorama introdutório talvez valha a pena salientar alguns dos aspetos nucleares da posição de Paul Singer sobre a economia solidária. Continuando a recorrer às suas próprias palavras, como fonte inequivocamente autêntica, podemos recorrer a uma outra entrevista que deu em 2007[3]. Convidado a explicar o que é a economia solidária, Paul Singer respondeu: “Nós costumamos definir economia solidária como um modo de produção que se caracteriza pela igualdade. Pela igualdade de direitos, os meios de produção são de posse coletiva dos que trabalham com eles – essa é a característica central. E a autogestão, ou seja, os empreendimentos de economia solidária são geridos pelos próprios trabalhadores coletivamente de forma inteiramente democrática, quer dizer, cada sócio, cada membro do empreendimento tem direito a um voto”.
No prosseguimento dessa entrevista, foi pedido então a Paul Singer para falar sobre o seu engajamento pessoal na economia solidária e sobre as principais razões que o moveram. Respondeu : “(…) quando eu tinha desesseis anos, entrei num movimento de jovens judeus que pretendiam formar um kibutz em Israel e morar lá. Portanto, a primeira formação socialista que eu tive na minha vida era exatamente de economia solidária, ligada, no entanto, com noções de que era preciso formar partido, tomar o poder, destruir o capitalismo. Quando eu saí desse movimento em 1952, eu tinha vinte anos; saí por razões pessoais, mas, sobretudo, porque eu não acreditava no sionismo. Eu achava que para lutar contra o antissemitismo seria melhor lutar em cada país do que reunir os judeus parcialmente num único país. Isso está gerando problemas trágicos agora que já estavam de certa forma se manifestando naquela época.
Aí me tornei militante socialista no Brasil, inclusive sindical, depois na universidade, como dezenas de milhares no Brasil. Eu sou um militante de esquerda como tantos outros e fui secretário do Planejamento aqui em São Paulo, ocupei cargos de direção no Partido Socialista, depois no PT; enfim, durante toda a vida fui militante político. E aquilo que seria a economia solidária da minha adolescência ficou um pouco no meu subconsciente. Relendo agora coisas que eu escrevi uns dez anos antes de se cunhar a palavra (não por mim), já havia em germe a preocupação. A experiência estalinista de socialismo foi trágica. Não foi apenas defeituosa: ela de socialismo não tinha coisíssima nenhuma, era só pretensão. […]
Mas, se esse não era o socialismo, o que era socialismo? Essa foi a indagação que me ocupou nos anos 1980. Num de meus livros chamado “Aprender economia”, há um capítulo chamado “Socialismo”. […] Ali já estão ideias de economia solidária sem esse nome.
Mas eu mesmo me esqueci disso, e foi em 1996, em função da crise do desemprego, da crise social, que eu inventei, por assim dizer, uma forma de reintroduzir coletivamente os desempregados na produção, inclusive usando a moeda social. […] A Igreja foi pioneira com o socialismo cristão, que nunca abandonou a ideia da autogestão, do desenvolvimento comunitário. E a Igreja brasileira é extraordinariamente progressista, sob influência da teologia da libertação. Acho que não há nenhum país como o Brasil. A teologia da libertação existe em toda a América Latina e mesmo fora, mas aqui é mais forte, o que deve ter contribuído para o desenvolvimento tanto teórico quanto prático da economia solidária no Brasil.”
Continuando a dar a palavra a Paul Singer, vale a pena recorrer à revista Diálogo Global, (da International Sociological Association) , que publicou na sua edição em português, em março de 2016 (vol.6 – nº1), uma entrevista com Paul Singer, cujo tema central foi a economia solidária.
A entrevista foi conduzida por Gustavo Taniguti (pós-doutorando em sociologia da Universidade de São Paulo) e por Renan Dias de Oliveira ( professor da Fundação Santo André). Tendo sido dada pouco antes do afastamento de Paul Singer do governo brasileiro imposto pelo golpe institucional, corresponde a um olhar relativamente recente sobre o panorama da economia solidária no Brasil e é um balanço do seu envolvimento neste campo ao longo da sua vida. Vamos por isso salientar alguns dos aspetos mais relevantes das suas respostas , mesmo correndo o risco de alguma repetição do que foi transcrito de entrevistas anteriores. São muito esclarecedores.
Perguntaram-lhe os entrevistadores em que medida já se interessava pela economia solidária nos seus tempos do CEBRAP. Paul Singer retorquiu: “Muito mais tarde, eu descobri que a Economia Solidária fora inspirada pela Igreja Católica. Na verdade, o termo Economia Solidária foi criado por um economista chileno, Luis Razeto, que escreveu vários livros sobre o assunto. […] A fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980, logo após a anistia, de 1979, não esteve ligada ao debate sobre a Economia Solidária. Meu interesse no assunto veio de uma iniciativa individual.[…]
Na década de 1990, o Brasil enfrentou uma crise tremenda, que afetou, particularmente, o sistema de emprego do país: 60 milhões de postos de trabalho simplesmente desapareceram durante a crise[…] Foi uma tragédia social real; por conta disso, fui convidado pela Igreja a visitar algumas das cooperativas que estavam sendo criadas no Brasil naquela época. Cáritas, que pode ser considerada o braço social da Igreja Católica, criou em torno de 1.000 cooperativas de trabalhadores, feitas, principalmente, de pessoas desempregadas. E visitar muitas dessas cooperativas me fez descobrir a resposta para uma pergunta difícil sobre o que significava a social-democracia. Porque essas cooperativas foram fundadas por desempregados; ou seja, não havia chefes, tampouco hierarquias. Tudo foi feito de forma coletiva, de forma igualitária.” […]
Os entrevistadores pediram depois a Paul Singer para lhes falar sobre o período 1989/93, durante o qual foi Secretário de Planejamento durante o mandato de Luíza Erundina na Prefeitura de São Paulo, nomeadamente, para relacionar as políticas de combate à pobreza, então desenvolvidas na cidade, com a Economia Solidária. Sublinhando as dificuldades da conjuntura vivida, disse: “Primeiro, criamos uma força-tarefa para realizar o primeiro censo de moradores de rua, a fim de pelo menos salvá-los da fome. Mais tarde, criamos cooperativas de catadores de materiais recicláveis. Este foi o início da Economia Solidaria. Particularmente, com a ajuda da Cáritas, nós descobrimos do que se tratava na Economia Solidária. Decidimos adotar, então, 100% dos princípios do cooperativismo e, já em 1996, eu estava convencido de que essa era uma expressão do socialismo democrático”.
Depois, os entrevistadores pediram a Paul Singer para contextualizar politicamente o surgimento do Fórum Brasileiro de Economia Solidária e da Secretaria Nacional de Economia Solidária e para lhes dar a medida da ajuda que um e outra deram ao desenvolvimento da Economia Solidária, nos vários níveis do Estado brasileiro (nacional, estadual e municipal). Respondeu:
“Era um contexto de elevadas taxas de desemprego, embora não tão severas como aquelas que tivemos na década de 1980.O governo de Fernando Henrique Cardoso foi fortemente neoliberal, sob várias formas. […] Quando o Lula foi eleito, em 2002, ele já tinha a certeza de que a Economia Solidária seria incluída em seu programa de governo. O Partido dos Trabalhadores adotou a Economia Solidária, portanto, que ainda está incluída na plataforma do partido. Assim que Lula iniciou seu mandato como Presidente, os movimentos de economia solidária começaram a realizar reuniões nacionais, cobrando a criação de uma secretaria no Ministério do Trabalho e Emprego. Isso aconteceu muito rapidamente, já em 2003, logo após a posse de Lula. Passamos alguns meses esperando a aprovação do Congresso; mas, em junho daquele ano, a Secretaria Nacional de Economia Solidária foi finalmente criada. O Fórum Brasileiro de Economia Solidária estava ligado à Secretaria, porque, logicamente, nós não iríamos introduzir qualquer política sem os movimentos sociais. Não fazia nenhum sentido. Com o Fórum, todas as políticas passaram a resultar de uma interação com os movimentos sociais, que fornecem relatórios vivos dos problemas, das demandas e das reivindicações da Economia Solidária.
Hoje, a Economia Solidária atravessa todo o país, da Amazónia ao Sul. Não é tão grande como gostaríamos que fosse, mas também não se trata mais de um pequeno movimento. Além da Secretaria, a mesma lei criou um Conselho Nacional, em que a maioria dos participantes vem do Fórum.
A Secretaria utiliza seu orçamento para promover e ajudar as cooperativas de Economia Solidária. Fizemos isso, especialmente, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, participando do programa Brasil sem Miséria. Cinco ou seis ministérios fizeram parte do programa; a Secretaria foi responsável pela inclusão produtiva em áreas urbanas, trazendo oportunidades para criar cooperativas para quem poderia estar interessado. Nossa estimativa é de que essa politica ajudou a tirar cerca de meio milhão de famílias da pobreza”. […]
Tendo os entrevistadores perguntado quais eram as virtudes das organizações económicas governadas por associações de trabalhadores, Paul Singer respondeu:
“Eu diria que a maior virtude é a democracia. As pessoas trabalham juntas, respeitando umas as outras, sem competição. Nosso mapa de Economia Solidária mostra que, no Brasil, temos cerca de 30.000 cooperativas ativas, envolvendo cerca de três milhões de pessoas. E temos, ainda, o apoio de partes importantes da sociedade civil, como a Igreja Católica, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e as universidades. Trata-se de uma experiencia social muito nova e estimulante.” […]
Este breve percurso através das ideias de Paul Singer, quanto à economia solidária, permite oferecer também um panorama sucinto do seu desenvolvimento no Brasil. É claro que a deriva conservadora que aflige o povo brasileiro desde o derrube ilegítimo da Presidente Dilma Rousseff em maio de 2016, é um contexto inóspito e profundamente desfavorável para a economia solidária. Mas as raízes que ela já conquistou no Brasil são demasiado fundas e extensas para serem arrancadas com facilidade. Mais cedo ou mais tarde, o futuro vai regressar ao Brasil e com ele a economia solidária poderá retomar a respiração emancipatória que lhe extorquiram, de modo a que volte a ser viabilizada e plenamente encorajada a sua irradiação.
- Este livro conjuga uma abordagem teórica e doutrinária da economia solidária, que valoriza em pleno a sua profundidade histórica, com a sua ancoragem na realidade brasileira. Desdobra-se em duas partes, cada uma das quais compreende oito textos.
A primeira é predominantemente constituída por um conjunto de ensaios, através dos quais o autor mostra como concebe teórica e doutrinariamente a economia solidária, valorizando-a como combate à exclusão dos explorados e como possível oportunidade emancipatória, rumo a um futuro que consubstancie um humanismo pleno. A segunda conduz-nos através de experiências da economia solidária no Brasil, em interação com o protagonismo político de Paul Singer, como membro do governo federal, tendo como pano de fundo a sua proximidade fraterna com as organizações envolvidas.
É claro que na primeira parte está sempre presente, como atmosfera mais ou menos sentida, a realidade brasileira, enquanto na segunda afloram com frequência considerações teóricas e doutrinárias. Cada texto vale por si, podendo ser lido autonomamente. Isso não impede que ocupe também um lugar específico no conjunto do livro, contribuindo para aquilo que este como um todo nos transmite. A diversidade dos textos e a multiplicidade das circunstâncias que os geraram podem fazer com que alguns deles pareçam ser entre si parcialmente recorrentes e desse modo parcelarmente sobrepostos. Mas, quase sempre, essas aparentes sobreposições se inscrevem afinal em tipos diferentes de abordagem.
Este livro mostra como, num país que é quase um continente, os pobres, os trabalhadores, os excluídos, os mais desfavorecidos, constroem uma resistência prática às sequelas de uma sociedade injusta. Resistência que, de algum modo, antecipa parcialmente o futuro que almejam. E é também pensamento sobre essa dinâmica social, pensamento apostado em compreendê-la para poder ser para ela impulso e estímulo.
Falando a partir da realidade brasileira, Paul Singer aborda afinal uma problemática universal, protagonizando um diálogo sempre vivo com experiências congéneres espalhadas pelo mundo. Pode assim dizer-se que o livro representa uma presença brasileira numa inquietação universal.
É certo que, desde meados de 2016, a economia solidária no Brasil sofre um cerco insalubre que a atrofia e constrange. O golpe de estado institucional então ocorrido não derrubou apenas um governo legítimo. Abriu também a porta a uma profunda regressão social , fruto de um paroxismo neoliberal que cada vez mais se mostra como o verdadeiro objetivo estratégico da rotura constitucional. Mas a economia solidária no Brasil está suficientemente enraizada para resistir a esta adversidade. E para assim poder ser parte de um dispositivo de esperança que não deixará de surgir, como horizonte e como caminho. Por isso, este livro, parecendo falar de um tempo já passado, é afinal um testemunho daquilo que há de vir.
Coimbra, 18 de abril de 2017
Rui Namorado
[1] Pelo prestígio do seu autor e pelo significado dessa manifestação de solidariedade, merece destaque o envio de uma carta a Dilma Rousseff , em 29 de Junho de 2015, pelo português Boaventura de Sousa Santos, Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sociólogo, intelectual e universitário internacionalmente reputado, cujas ideias têm uma presença particularmente forte na América Latina. Esta carta integrou-se num movimento de defesa da permanência de Paul Singer no governo brasileiro e dela se transcrevem os seguintes excertos: “O nome de Paul Singer – a quem tenho muito apreço e admiração pessoais e respeito político e intelectual –, foi referendado pelo movimento para orientar a política de economia solidária a fim de conduzir uma política em constante diálogo com a sociedade e em atendimento às demandas dos movimentos sociais com quem se relaciona. […]
Paul Singer é um político, um intelectual e um militante respeitado, tanto no campo político como no campo académico nacional e internacional. Trata-se de um homem que lutou pelas conquistas democráticas do Brasil e espero, profundamente, que ele possa continuar contribuindo, desde o Estado, para a legitimidade de outras economias possíveis.
Sendo assim, me junto ao apelo dos movimentos sociais e venho, por meio desta carta, requerer a manutenção e a ampliação desta política pública executada pela Secretaria Nacional de Economia Solidária, em parceira com o movimento popular de economia solidária e liderada por Paul Singer – nome que tem a confiança dos movimentos sociais”.
[2] Esta entrevista a Paul Singer foi feita por Joel dos Santos Guimarães e Paula Quental, tendo sido publicada no portal Brasil Debate em 24/12 /2014.
[3] Este excerto e os que se lhe seguem foram retirados de uma entrevista a Paul Singer sobre economia solidária feita pelo Professor da USP, Paulo Salles de Oliveira no dia 23 de setembro de 2007, que foi publicada na revista Estudos Avançados ( vol.22- nº 62) [ São Paulo- jan./abr.2008].