Desenvolvimento: Significado e Estratégia

SIGNIFICADO

Entendemos por desenvolvimento um processo de fomento de novas forças produtivas e de instauração de novas relações de produção, de modo a promover um processo sustentável de crescimento econômico, que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se encontram marginalizados da produção social e da fruição dos resultados da mesma.

Quanto às forças produtivas, o ponto de partida é o patamar de seu desenvolvimento  na atualidade, quando o capitalismo está hegemônico. Este patamar é ultrapassado a cada momento, tanto por revoluções tecnológicas em curso, como pela disputa dos mercados por empresas privadas capitalistas e não capitalistas, conforme regras que tornam vencedores os que dispõem da melhor tecnologia. A presença de empreendimentos  individuais, familiares, coletivos ou públicos sem fins lucrativos influi na direção do desenvolvimento, que no entanto é determinada predominantemente pela competição tecnológica entre empreendimentos que visam lucro.

O desenvolvimento almejado deve gradativamente tornar a relação de forças entre empreendimentos que não visam apenas nem principalmente lucros e os que sim o fazem, mais favorável aos primeiros. Se e quando a economia solidária, formada por empreendimentos individuais e familiares associados e por empreendimentos autogestionários, for hegemônica, o sentido do progresso tecnológico será outro, pois deixará de ser produto da competição intercapitalista para visar a satisfação de necessidades consideradas prioritárias pela maioria.

Este tema é atualizado na controvérsia ao redor dos transgênicos assim como ao redor da agricultura orgânica x aplicação das técnicas químicas etc.. na produção vegetal e animal. O mesmo possivelmente se passa na dicotomia do desenvolvimento da educação à distância x educação democrática, que se baseia na auto-educação coletiva de crianças e jovens. Em suma, o desenvolvimento busca novas forças produtivas que respeitem a natureza e favoreçam valores como igualdade e auto-realização, sem ignorar nem rejeitar de antemão os avanços científicos e tecnológicos promovidos pelas multinacionais, mas submetendo-os ao crivo permanente dos valores ambientais, da inclusão social e da autogestão.

Estas controvérsias não se alimentam apenas da diversidade de valores, que está em sua origem, mas também de diferentes pontos de vista científicos, que talvez possam ser resolvidos pelas pesquisas em andamento. Seria simplificar demais imaginar que o desenvolvimento de novas forças produtivas – novos bens e serviços de consumo humano e novos processos de produção – esteja dividido de forma maniqueísta entre os que querem a sobrevivência da humanidade e os que não se importam com ela. Os que lideram o desenvolvimento a partir do comando das grandes empresas e os que o fazem a partir empreendimentos solidários, ONGs e movimentos sociais, compartilham em grande medida os mesmos valores fundamentais.

Em parte pelos menos a controvérsia não é de valores mas de crenças em hipóteses probabilísticas, que o progresso científico talvez venha a comprovar ou rejeitar. Estas hipóteses conflitantes se referem aos efeitos da emissão de gases sobre o clima e aos efeitos da produção de entes geneticamente modificados sobre o meio ambiente animal e vegetal, para citar dois exemplos de forte embate político no presente. É de se esperar que em algum momento a opinião científica se unifique a favor dum lado ou de outro, como fez recentemente a favor da hipótese do efeito estufa, que adquiriu o status de teoria ao contar com a aprovação da maioria da comunidade científica. Portanto, neste momento apoiar a aplicação do Acordo de Kyoto é uma exigência do desenvolvimento sustentável em termos ambientais e sociais. Em outro momento, o desenvolvimento poderá exigir conduta diferente.

Do ponto de vista social, uma controvérsia importante, que afeta o rumo do desenvolvimento, diz respeito ao valor da competição versus o da cooperação, como motivação de comportamentos desejáveis para o progresso da humanidade. Existem linhas de pesquisa de economia experimental que visam esta controvérsia, mas é duvidoso que elas consigam resolve-la unicamente através do desenvolvimento de teorias dos jogos. Esta controvérsia, que está no cerne das grandes lutas políticas de nossa época, provavelmente será resolvida pela comparação entre práticas competitivas e cooperativas, nas diferentes sociedades nacionais.

O conceito de desenvolvimento aqui proposto é uma opção em termos de valores, mas sua concretização dependerá da evolução do conhecimento. Obviamente, é imperioso agir sem esperar que as dúvidas sobre as hipóteses, que fundamentam nossas opções, estejam todas resolvidas. Por isso, é inescapável adotar hipóteses, frágeis em si mesmas, para definir os rumos por onde desejamos que humanidade se desenvolva. Mas, importa também não olvidar que as hipóteses, em que fundamentamos nossas opções, a qualquer momento poderão ser rejeitadas, em função de novos conhecimentos adquiridos; e que as hipóteses, em que nossos adversários se baseiam, podem se mostrar, em algum momento, verdadeiras, o que poderá exigir a reformulação dos rumos do desenvolvimento, sem que nossos valores sejam abalados.

 

ESTRATÉGIA

A estratégia de desenvolvimento depende do momento histórico, pois ela resulta do acúmulo de experiências de desenvolvimento e das instituições econômicas, sociais e políticas vigentes. No atual momento histórico, o acúmulo referido pode ser descrito do seguinte modo:

  1. O modelo de desenvolvimento centralmente planejado, praticado do início dos 1930 até o final dos 1980, se mostrou incompatível com a democracia e contrário ao desenvolvimento de novas forças produtivas, mesmo quando promovia os avanços científicos que as tornavam possíveis. É no atual momento consenso quase completo que o desenvolvimento exige a descentralização das decisões, tanto de produção como de consumo. Isso significa promover a liberdade de iniciativa na produção, distribuição e consumo de indivíduos, famílias, associações bem como de  capitais de todas as dimensões, unificados em empreendimentos.
  2. O controle macroeconômico de economias nacionais pelos governos garantiu um longo período de desenvolvimento acelerado, pleno emprego e avanço social e político, mas acabou sendo abandonado nos países adiantados, tido como inerentemente inflacionário. O mesmo abandono está sendo imposto a países periféricos mediante acordos no seio da OMC (Organização Mundial do Comércio). Desde então o crescimento desacelerou, crises financeiras se multiplicaram, o desemprego em massa ressurgiu em muitos países e diversos avanços sociais foram eliminados. Forças favoráveis e contrárias ao keynesianismo se defrontam em muitos países. China, Índia, Malásia e Taiwan são dos países que mais crescem e todos aplicam políticas que constam do receituário intervencionista.
  3. Este confronto está tomando a forma, nos últimos anos, de regulamentação ou não do sistema financeiro internacional e de cada país. O grande sucesso do movimento Attac assim como dos Fóruns Sociais Mundiais, continentais e nacionais está servindo para polarizar a opinião pública. A pressão do capital financeiro sobre países endividados tem obrigado os governos a negar emprego, educação, saúde e outros serviços socais à população trabalhadora, impondo à mesma sofrimentos insuportáveis. Os levantes na Argentina e na Bolívia, que derrubaram os governos destes países, reforçam no mundo os movimentos e partidos que propugnam pela subordinação do capital financeiro ao capital produtivo e ao trabalho organizado.
  4. Com a queda das economias planejadas na Europa e seu enfraquecimento na Ásia (China, Vietnam), grande número de países adquiriu instituições democráticas, que funcionam em níveis muito diferentes de autenticidade. A grande maioria das nações atualmente se pretende democrática, o que ensejou avanços sociais significativos, apesar da pressão contrária do neo-liberalismo, que representa quase unicamente os interesses do setor financeiro.
  5. Do ponto de vista do desenvolvimento, o abandono do planejamento centralizado foi um avanço mas o abandono do keynesianismo um  recuo. A sociedade de mercado, em pleno desenvolvimento, entrou em choque com a massa dos excluídos pelo desemprego ou pela pobreza, muitas vezes hereditária. Deste entrechoque vem resultando o renascimento da economia solidária na Europa e nas Américas e também nos demais continentes em alguma medida. A economia solidária incorpora à produção e ao consumo grande número de excluídos, dando demonstração concreta que constitui alternativa concreta à sociedade de mercado, na qual os despossuídos não têm lugar.

 

Este acúmulo de experiências históricas indica que o desenvolvimento requer políticas fiscais e monetárias que induzam o crescimento da economia e que preventivamente abram pontos de estrangulamento. Estas políticas são conhecidas como “keynesianas”. Mas, se elas voltarem a ser praticadas, é pouco provável que assumam o caráter autoritário que exibiam no século passado. As medidas de política econômica tinham então de ser decididas em segredo para que não se as usasse para especular no mercado financeiro. O avanço da democracia participativa e da desconcentração do capital exige a democratização da política econômica e o controle do mercado financeiro pela sociedade. O atendimento destas exigências faria com que a macro-economia keynesiana tivesse outro estilo e por causa disso outro conteúdo, se e quando vier a reviver.

A volta do desemprego em massa e de longa duração, combinada com o contínuo desgaste dos direitos sociais e da seguridade social, acarretou crises sociais em muitos países, particularmente severas nos semi-desenvolvidos, como o Brasil. Na luta contra as crises sociais, surgiram movimentos sociais e ONGs, que organizam as suas vítimas para que promovam sua própria reinserção  mediante a construção de associações e empreendimentos solidários. É por meio delas que camponeses sem terras, catadores de lixo, artesãos, criadores de pequenos animais, extrativistas minerais, vegetais e animais etc. travam lutas por regulamentação legal e subvenções de governos locais, regionais e nacionais.

 

Estas lutas marcam transformações estruturais, como a substituição dum vasto proletariado industrial, detentor de direitos conquistados em longas lutas, por uma massa de produtores autônomos, organizados coletiva ou individualmente, sem os referidos direitos mas com potencialidades para desenvolver direitos sucedâneos sob a forma de fundos coletivos e sistemas solidários de seguros. Isso significa que a economia, que almejamos que se desenvolva, deixa paulatinamente de ser capitalista (ao menos no sentido marxista clássico duma sociedade de duas classes antagônicas) para se tornar cada vez mais mista. Nela poderão conviver empresas capitalistas de todos os tamanhos, cooperativas de produção, de compras e vendas, de crédito, clubes de troca e associações de consumidores ‘conscientes’, ao lado de empreendimentos públicos e privados que não visam lucros, nos quais trabalham, ombro a ombro, voluntários e profissionais, autônomos e assalariados, do setor público e do privado.

A estratégia do desenvolvimento decorre destas lutas e das transformações que acarretam. Contempladas como um todo, é inegável que o sentido destas lutas é anti-capitalista, mesmo quando os seus protagonistas não tenham consciência disso. Muitas destas lutas são defensivas e representam o enfrentamento de ameaças (como as de empregados em firmas em crise, para se apropriar do patrimônio e preservá-lo como auto-gestão) ou a reação a condições desumanas de vida. Seu caráter anti-capitalista decorre muitas vezes da falta de capital, mais do que de valores de solidariedade e igualdade.

Se a estratégia do desenvolvimento visa à construção duma economia mista na qual os segmentos solidários sejam hegemônicos, será necessário mostrar aos protagonistas de lutas anti-capitalistas o significado de suas ações, imbuindo-os de valores consistentes com os seus objetivos. Ao contrário do capitalismo, que se confunde com a ‘normalidade’ e não requer a conscientização dos valores que lhe subjazem, a economia solidária só pode desenvolver suas potencialidades se os seus protagonistas o desejarem conscientemente. Por isso, atividades permanentes de difusão e educação ideológica são partes integrantes duma estratégia de desenvolvimento, com os objetivos acima delineados.

 

Paul Singer, 2003

 

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