Apresentação de Alexandre Freitas Barbosa a Desenvolvimento e política: reflexões sobre a crise dos anos 60 (trechos selecionados)



“No “Prefácio” à primeira edição de Desenvolvimento e crise, o seu autor julga necessário dar alguns recados aos leitores. Ele se refere aos capítulos do livro como “ensaios” marcados por “diferenças de ênfase”. Em seguida, afirma que, apesar do conjunto relativamente harmônico”, eles fazem parte da “evolução” do seu pensamento no período. Trata-se, portanto, de um pensamento – não pronto e acabado – que se nutre da prática para compreender teoricamente o objeto de pesquisa na sua totalidade.

Não deixa de ser revelador que, na primeira página do ‘Prefácio’, o adjetivo estrutural apareça três vezes, como ‘contradições estruturais’ ou ‘transformações de estrutura’. Afinal, insiste o autor, o elemento unificador é ‘a preocupação com as mudanças estruturais que se verificam na economia quando se dá o desenvolvimento’.” (…)

No capítulo 2, “Singer aponta duas concepções básicas na teoria econômica. Uma que trata “desenvolvimento’ como sinônimo de ‘crescimento’. Os países subdesenvolvidos são aqueles que crescem abaixo do potencial, pois não se aproveitam da sua dotação de fatores produtivos. Para essa concepção, a dinâmica econômica é ‘invariavelmente a mesma’ em qualquer tempo e espaço, não havendo diferenças entre sistemas econômicos. Inexiste aqui uma ‘visão integrada da economia subdesenvolvida”, pois ela deriva da junção de características isoladas.’

O autor passa logo, em seguida, para a concepção estruturalista. Aqui o desenvolvimento é encarado como “o processo de passagem de um sistema a outro”. Segundo essa abordagem, o funcionamento das economias encontra-se condicionado às estruturas existentes, sem as quais não possui validez histórica.

Para Singer, mesmo partindo da reflexão sobre ‘sistemas, regimes e estruturas’ historicamente condicionados, ‘o método indutivo do estruturalismo’ não logra articular as estruturas a um sistema mais amplo. Portanto, ‘as estruturas desligadas dos sistemas não passam de abstração sem significado’. É o movimento oposto, do sistema que ‘se desdobra em estruturas’, que permite captar a totalidade da realidade histórica, concebendo o particular como manifestação do universal, a unidade na diversidade.” (…)

“Nos capítulos 3, 4 e 6, Singer parte para a análise do funcionamento da ‘economia de um país subdesenvolvido que se acha incluído no sistema econômico liderado pelas nações capitalistas industrializadas’.

Num primeiro esforço analítico, ele divide a economia brasileira, ‘colonial’ ou subdesenvolvida’, em dois setores: de mercado e de subsistência. No caso do latifúndio escravista, ambos fazem parte do mesmo complexo de produção, sediado na grande fazenda. Mesmo no regime de colonato das fazendas de café, os trabalhadores se dividem entre a produção para o mercado e para a subsistência. Já no Nordeste, os setores aparecem em territórios distintos, pois o setor de mercado concentra-se na Zona da Mata, perfazendo o agreste e o sertão o papel de setor de subsistência. A descrição das várias situações concretas tem como base a pesquisa da sua tese de doutorado.

Uma das inovações do livro é justamente proceder a uma investigação dos fluxos econômicos entre os vários setores: economia de subsistência, economia de mercado e mercado externo. Como ressalta o autor, o movimento do setor de mercado comanda a divisão interna do setor de subsistência, em que uma parte é produzida para o autoconsumo e outra para o setor de mercado.

Singer utiliza o conceito de ‘economia natural’, emprestado de Ignácio Rangel, para denominar a produção da economia de subsistência voltada para o autoconsumo. E a noção de articulação entre setores remonta à análise realizada por Celso Furtado, quando descreve a formação do complexo nordestino por meio da articulação entre a pecuária e a produção açucareira no período colonial.

Num segundo momento, Singer aprimora o modelo para entender a dinâmica de uma economia subdesenvolvida, ao dividir o setor de mercado em economia de mercado interno e economia de mercado externo. Paralelamente, ele passa a denominar o ‘mercado externo’ como ‘economia (ou setor) capitalista’. O esquema de fluxos entre os vários setores ganha em complexidade

O seu objetivo é mostrar como o setor de mercado interno tende a substituir as importações realizadas pelos dois outros setores, ao mesmo tempo que concentra para si as divisas alocadas na aquisição de bens de produção. Quando isso acontece, conclui-se a etapa 1 do desenvolvimento.

Mas não se pode perder de vista o ‘conteúdo político-social’ do desenvolvimento. Pois o que está em jogo é ‘a desapropriação do excedente, que, para tornar-se real, precisa passar das mãos dos latifundiários, comerciantes e banqueiros, ligados ao comércio exterior para as dos empresários do setor de mercado interno’.

Não à toa, o processo detonado na etapa 1 é resultado direto da ação do Estado e ‘só pode se dar em condições políticas que, via de regra, também são revolucionárias’. Nesse sentido, ‘o estudo do desenvolvimento não pode ser confinado apenas ao campo das especulações econômicas’

A autonomização do setor de mercado interno não é espontânea e tampouco inevitável. Singer faz questão de frisar que ele surge como fornecedor de serviços complementares ao setor de mercado externo, possuindo um caráter acessório. Nesse momento, ele ainda não conta com ‘capacidade própria de expansão’.

A etapa 2 do desenvolvimento ocorre quando o setor de mercado interno avança na produção interna de bens de capital. O mercado externo deixa de ser o motor e também o principal fator de constrangimento à expansão da economia com diferenciação produtiva. Agora outras preocupações emergem: a extensão do mercado interno e o capital disponível para o investimento. Na prática, contudo, como esclarece o autor, as etapas 1 e 2 se superpõem, não existindo ‘um limite nítido entre elas’

Singer destaca que, antes da etapa 1, quando a expansão econômica é comandada pelo setor de mercado externo, e predomina a economia colonial, o país encontra-se em ‘situação de pleno subdesenvolvimento’. Percebe-se, portanto, como ao longo do texto os conceitos são costurados e assumem nova caracterização.” (…)

“No Capítulo 6, o sistema econômico do Brasil no período pós-1930 é descrito como um caso em que a economia subdesenvolvida ‘ainda não adquiriu inteiramente características capitalistas’.

Porém, ao acompanhar o processo de substituição de importações, Singer sugere que ‘a economia deixa de ter a sua dinâmica presa à dos países industrializados’. Por sua vez, o setor de mercado interno, ‘que é capitalista, passa a ser um foco autônomo de variações conjunturais’.

Não apenas a pirâmide industrial está sendo montada de cima para baixo (bens de consumo e, depois, bens intermediários e de produção), mas também os pontos de estrangulamento aparecem por todos os lados: escassez de energia elétrica e de combustíveis, de infraestrutura de transportes, de mão de obra qualificada etc.

De modo a não travar o processo, o governo recorre a emissões, mantendo a economia em expansão, assim como as margens de lucros dos empresários e a parcela destinada a bens de produção. Tudo parece indicar a inexistência de ciclos de conjuntura, típicos das economias desenvolvidas.

Na prática, a poupança forçada é assegurada por dois mecanismos: o confisco cambial, que transfere à burguesia industrial parte do excedente do setor de mercado externo; e o confisco salarial, devido ao reajustamento dos salários em prazos mais longos se comparados com os preços dos artigos de consumo da classe operária.

Uma vez rompidos ambos os ‘diques’ que protegem a geração de ‘poupança forçada’, entra em cena a inflação de custos e avança a espiral inflacionária a partir de 1959.

Trata-se de uma interpretação original, elaborada no calor da hora, logo após o Golpe de 1964. Singer descreve a crise como ‘de conjuntura’, que não pode ser confundida com a ‘crise de estrutura’ –esta resultante do ‘embate entre o impulso desenvolvimentista e as estruturas arcaicas’, caracterizadas pela imobilidade tecnológica na agricultura e pelo papel do capital estrangeiro travando a expansão dos serviços públicos.

A crise de conjuntura remete à própria natureza da economia capitalista, resultante da anarquia da produção, em virtude da incapacidade do mercado para gerar a necessária alocação de investimentos em face das necessidades reais da economia. A estagnação, promovida pelo governo, faz que a crise de estrutura se atenue e os resíduos coloniais aparentemente deixam de ser um problema.

No entender do autor, a raiz do problema está na concepção de que as reformas de base poderiam libertar uma série de entraves estruturais, ‘deixando intocada a anarquia da produção e suas consequências cíclicas’. Aí está a sua verdadeira diferença com os estruturalistas brasileiros. Pois, no seu entender, tanto a crise de conjuntura, como a crise de estrutura – que se superpõem –, devem ser enfrentadas ‘operando-se modificações profundas na economia, num sentido anticapitalista’, por meio do planejamento econômico integral.

Assim se explica a omissão deliberada de Furtado no texto. Alguns dos livros do economista aparecem citados marginalmente, embora deles se aproveite, assim como no caso de Rangel, para a composição de seu edifício teórico original. Furtado comparece ainda na análise crítica do Plano Trienal.

Para retornar expressamente ao final do livro, quando o jovem economista refere-se à ‘escola estruturalista’ como a ‘versão econômica do reformismo’. No seu entender, a utilização de ‘remédios monetaristas’ – leia-se Plano Trienal – pode ser explicada pela dificuldade de perceber que as crises de estrutura não estão dissociadas das crises de conjuntura, típicas de uma economia capitalista onde vigora a anarquia da produção.” (…)

“A leitura do artigo A política das classes dominantes, na sequência de Desenvolvimento e crise, comprova o acerto dos editores. O estilo é ensaístico, mas sem proselitismos. Paul Singer exercita com primazia a sua pedagogia política.

Logo na introdução, ele anuncia a sua perspectiva: ‘não se trata de pesquisa e nem se pretende provar as assertivas feitas’. Quer o autor ‘esclarecer, em alguma medida, aos que se engajam na luta do povo brasileiro por sua libertação, o que são os partidos de direita’.

Fazemos apenas um reparo. O intelectual não é um participante ‘ocasional’ da vida política do país, pois atua na militância partidária e na organização sindical ao longo de todo o período.

Nesse ensaio, percorre-se a o período entre 1945 e 1964 a partir de um olhar que insere a economia na política e as ideologias nas classes sociais. Se o foco são as classes dominantes e os partidos ‘burgueses’, PSD e UDN, o seu objetivo é entender as opções e os equívocos da esquerda durante a crise dos anos 1960.

Trata-se de leitura obrigatória para a compreensão do Brasil desenvolvimentista, acompanhando o seu andamento contraditório e repleto de nuances. O figurino de ‘cientista político’ não cai bem no autor, pois o conjuntural apenas se explica a partir das relações de classe desse capitalismo que avança de modo peculiar.

Na prática, Singer constrói um esquema analítico para destrinchar o funcionamento das instituições políticas no período. Em vez de se concentrar nos estatutos e nos programas dos partidos, ou de questionar a sua ‘autenticidade’, ele vai direto ao ponto: que ‘papel’ os partidos das classes dominantes desempenham na vida política do país?

Em primeiro lugar, Singer caracteriza os ‘políticos profissionais’ que desempenham funções no Executivo e Legislativo nos vários níveis da federação. Por meio de um raciocínio weberiano, o autor classifica três ‘tipos puros’: o coronel, o representante do grupo econômico e o político de clientela.

Se o coronel remete ao político tradicional com raízes no passado, no contexto do Brasil urbano ele sofre readequações, atuando cada vez mais em empreendimentos capitalistas. Já o político de clientela, vinculado a setores do eleitorado, prima pela estreiteza do horizonte político e pela atitude oportunista. Também ele passa a ser engolfado pelas redes empresariais. Portanto, o desenvolvimento da economia capitalista no Brasil tende a repercutir no plano político, tornando ‘o representante do grupo econômico a figura central do processo’.

A questão decisiva para o nosso ensaísta político é a seguinte: como esses grupos políticos se enquadram nos partidos das classes dominantes?. Não se pode superestimar a sua homogeneidade, ele nos diz. O que pode parecer instabilidade dos partidos de direita para um cientista político puro-sangue, ele concebe como um recurso para dar ‘às suas estruturas o máximo de flexibilidade’

Na seção 5 do texto, Singer procede a uma recuperação histórica da atuação dos partidos burgueses no período analisado.

O PSD e a UDN possuem origens distintas. O primeiro surge do agrupamento de chefes políticos locais em torno do Estado Novo.

O segundo tem a sua unidade selada pelo antivarguismo. Reconfigurados no período pos-1945, eles garantem a sustentação do processo de acumulação de capital, apesar das orientações ideológicas aparentemente distintas e da participação diferenciada nos sucessivos governos.

Como nos relata Singer, ‘a politica operaria e sempre a pedra de toque para se averiguar o conteúdo de classe de um governo’, claramente burguês no governo Dutra. No segundo governo Vargas, com o ‘renascimento operário’, o conteúdo de classe mostra-se menos evidente. No governo JK, a politica operaria segue ‘ativa’, ‘sob o  patrocínio do PTB, sem que a burguesia tivesse motivos de preocupação’.

Durante o governo JK, dois processos coligados alteram o quadro econômico e politico. Em primeiro lugar, muda a composição da burguesia. O processo de centralização de capitais, comandado pelo capital estrangeiro, abre um fosso entre a grande e a pequena burguesia, esta ultima mais ‘nacionalista’, ainda que cada vez mais propensa a confundir ‘capitalismo de Estado’ com ‘socialismo’.

Em segundo lugar, fica patente a inaplicabilidade dos expedientes usuais para estimular o desenvolvimento. A burguesia se depara com dois tipos de solução: transformações produtivas na própria estrutura econômica ou deflação. Prefere a primeira solução, mas sua posição de classe ‘só lhe permite escolher a segunda alternativa’.

Paralelamente, no plano politico, entre agosto de 1961 (renuncia de Jânio Quadros) e janeiro de 1963 (vitória do presidencialismo com Joao Goulart), pela primeira vez, desde 1945, ‘se defrontam a grande burguesia e o capital estrangeiro com uma esquerda no comando de poderosas organizações de massas e com real influencia sobre os poderes constituídos’

Nesse contexto, o PSD exerce um papel dúplice. De um lado, representa a ala da grande burguesia que confia na solução da crise, com Jango, em prol dos seus interesses de classe. De outro, opõe-se as ‘veleidades reformistas’ do governo, por levarem a divisão das classes dominantes num contexto de acirramento dos ‘choques com o movimento operário e camponês’. Para complicar o cenário, ‘as soluções burguesas para a crise econômica’, ensaiadas com o Plano Trienal, reforçam a unidade de classe dos detentores de riqueza. Nosso economista-cientista politico termina seu texto procurando compreender por que as classes dominantes perderam o controle do processo politico. No seu entender, o período pós-revolução de 1930 revela o equivoco da concepção de que a função do Estado ‘e apenas servir de arbitro na luta de interesses privados’. Para então emendar: ‘acontece que o Brasil e um pais subdesenvolvido’ devendo o Estado intervir vigorosamente no progresso econômico, o que acarreta não apenas embates entre frações da própria burguesia, mas também destas com a classe trabalhadora.

Neste sentido, a intervenção militar representa ‘a falência da politica partidária burguesa’. Mas a sua veia critica não poupa a esquerda que se mostrou ‘imatura para o pleno exercício do poder’: ‘sendo fraca demais para conquista-lo, contentou-se em exercer o papel de grupo de pressão sobre os que o detinham’.

Aqui flagramos uma das marcas registradas de Paul Singer ao longo de toda a sua trajetória: o exercício da autocritica consistente como tarefa inescapável dos intelectuais e dos movimentos sociais de contestação ao capitalismo.”



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