Homenagem de Suzana Singer a seu pai

Contar a vida do meu pai não é difícil. Seus 86 anos foram de uma coerência extraordinária. 

Órfão de pai, vítima do nazismo, Paul Singer foi criado por sua mãe costureira a 10 mil quilômetros de sua Viena natal. Adotou o Brasil, país que amou intensamente, com a mesma força com que abraçou as causas de esquerda. Primeiro, como adolescente sionista, depois como jovem líder operário, estudante universitário, professor, intelectual, fundador de um partido e membro do governo.

Ser de esquerda não significava aderir à ortodoxia. Duvidou desde cedo que o centralismo estatal russo merecesse ser chamado de socialismo. Não acreditava em guerrilhas, terrorismo e revoltas armadas. Só valia a pena lutar por um regime que promovesse a igualdade, mas que fosse profundamente democrático, pelo qual se construísse uma sociedade onde fosse possível conciliar liberdade individual com uma convivência decente, não competitiva, não antagônica com outros seres humanos. Como definiu um professor seu de economia, Paulo tinha “ideias muito bem amarradas desde jovem”.

Suas convicções não o impediam de ouvir quem pensasse diferente. Nunca conheci alguém tão livre de preconceitos. Respeitava genuinamente a opinião do outro e tentava extrair, com sua racionalidade perspicaz, algo de útil no que estava sendo dito. Quando, em 1998, um grupo de estudantes da FEA veio lhe contar que tinham impedido um ministro liberal de dar uma palestra na faculdade, ele não gostou. Passou-lhes uma descompostura, dizendo que não havia por que se orgulhar de censurar a fala de outrem.

Em uma viagem com ele aos Estados Unidos, esperávamos por um voo atrasado, quando um americano começou a puxar conversa. Ao saber que se tratava de um economista brasileiro, dissertou longamente sobre por que precisávamos controlar a natalidade e todas as vantagens das teorias malthusianas. Papai ouviu tudo e encerrou o papo dizendo: “Já eu acredito que todos, especialmente os mais pobres, devem ter o direito de ter quantos filhos queiram”. 

A independência de pensamento e uma sólida formação teórica impediam que meu pai se acomodasse. Aceitava desafios, não tinha medo de errar, acreditava que bastava ter vontade. Vivendo uma temporada em Berlim, decidiu, aos 46 anos, aprender a andar de bicicleta. Foi treinar numa área descampada, que, descobriu depois, era um aeroporto. Quase foi atropelado por um avião aterrissando, contava minha mãe, lembrando do desespero do guarda que acenava loucamente para ele sair dali. 

Já era um intelectual reconhecido, professor titular na principal universidade do país, quando arregaçou as mangas para ajudar a viabilizar iniciativas de economia solidária. Nessa fase final de sua vida, encontrou enorme satisfação na proximidade com os excluídos, desde sempre primeiro alvo de suas preocupações. Voltava comovido, e meu pai não era dado a grandes demonstrações de afeto, dos encontros em cooperativas, com aqueles que estavam progredindo através do trabalho em comunidade.

A vida de meu pai é tão coerente, que posso terminar essa fala com palavras dele, escritas há mais de 50 anos. É um trecho de um poema que ele fez, no meu primeiro aniversário, quando estava longe, preparando sua livre-docência nos Estados Unidos.

 O que ele desejou a mim pode ser endereçado a todos que estamos aqui hoje, comemorando, pela primeira vez, o aniversário de Paul Singer, sem ele:

“Felicidades para você, filha minha

que os anos vindouros sejam tão leves quanto este que passou,

que você possa aprender (sem sofrimento desnecessário)

a aceitar sem se resignar

a ficar em paz consigo mesma (mesmo à custa da paz com os outros)

a ser leal sem ser vítima de falsa piedade

é o que deseja teu pai

neste dia de teus anos em que ele não pode te ver” 

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